sábado, 20 de fevereiro de 2016

Altos e baixos da 9ª Mostra O Amor, a Morte e as Paixões



Desde que retornou em 2012, a Mostra O Amor, a Morte e as Paixões garante duas semanas de fevereiro para trazer a Goiânia dezenas de filmes do circuito mais alternativo. Em parte, é uma repescagem da Mostra de SP e do Festival do Rio do ano imediatamente anterior, mas um ou outro lançamento acaba antecipando estreias. Para além de alguns grandes filmes, talvez a melhor coisa nessa lógica de várias sessões reunidas num único lugar seja fazer com que o público de shopping mais típico, ou com visão mais conservadora sobre cinema (aquelas pessoas que procuram um filme apenas atrás de "uma mensagem", ou "de uma história que merece ser contada"), se arrisque ou entre meio que por acidente em sessões de filmes que podem lhe causar algum choque térmico, tirá-los do conforto de um cinema seguro que geralmente impera nos multiplexes e até fora deles. Eu mesmo indiquei Cavalo de Turim e Carol para duas senhorinhas aparentemente conservadoras, por exemplo.

A Mostra sempre aconteceu nos Cinemas Lumière do shopping Bougainville, localizado em bairro nobre de Goiânia, o Setor Marista. Como se trata de um multiplex empresarial (embora seja um dos que se arrisque com programações mais alternativas, mescladas ao que há de mais comercial), é compreensível que a Amor Morte Paixões misture o exigente cinema do húngaro Béla Tarr com um blockbuster como Deadpool e indicados ao Oscar, como A Garota Dinamarquesa, e também salas cheias garantidas, por mais bizarras que sejam, como é o caso de Os Dez Mandamentos (que aparecia no catálogo da Mostra ao lado de um Boccaccio dos Taviani, por exemplo). Eu falo que é compreensível porque de algum modo é essa mistura que talvez garanta a continuidade e o trabalho de se trazer obras realmente importantes para Goiânia e para um público de shopping que muitas vezes não está acostumado a isso. Nenhuma Mostra de shopping sobreviveria passando apenas As Mil e Uma Noites de Miguel Gomes e filmes de Lav Diaz, afinal. E pra quem sabe o que procurar e como se organizar, é facílimo fugir de aberrações como Amor em Sampa e Os Dez Mandamentos (um novo modelo de evangelização e, a meu ver, lavagem cerebral, mas isso é outra discussão...).

Mas, bom, vamos aos altos e baixos mais pontuais.


BAIXOS

- Passaram a cobrar pela grade de programação impressa (não catálogo, que não existe, e sim a grade com salas e horários). R$ 2. Inquestionável o valor da Mostra pelos filmes que traz, mas cobrar por grade de programação, contudo, é um tanto ridículo e feio.

- As sessões de curtas goianos. Não pelos curtas em si, mas por se fecharem em duas sessões de curtas que inevitavelmente ficariam em horário ingrato (às 10h45 de uma sexta e de uma terça). São curtas, e creio que seriam mais vistos, sem muito esforço por parte do público, se distribuídos cada um antes de um longa em horário mais favorável. Além disso, recentemente soube que nenhum dos realizadores dos curtas goianos ganhou direito a tirar ingresso como convidado, sequer cinco ou três ingressos por realizador. Penso que, trazendo tantos filmes importantes, a Mostra AMP também age como um elemento de formação do olhar (fez parte do meu, desde sua primeira edição em 2001), e cinco cortesias para realizadores, alguns deles estudantes, seriam um incentivo valioso e elegante, acredito. Ficam como sugestões para o ano que vem: o lugar dos curtas na grade e um certo número de ingressos reservados a seus diretores e diretoras (dois pra cada, que seja...).

- Amor em Sampa como filme de abertura me parece um show de horrores. Como é uma sessão gratuita, penso que acaba sendo uma oportunidade perdida de encher uma sala para assistir a algum filme brasileiro que tenha lá sua distinção, que desequilibre o lugar comum do espectador. Ano passado foi assim, com a exibição de Casa Grande, de Felippe Barbosa (que por mais que tivesse Marcelo Novaes, havia ali uma inversão de expectativa; não é um cinemão comercial esterilizado como Amor em Sampa ou de globochanchadas mil). Este ano poderia ter sido Boi Neon, de Gabriel Mascaro, ou Campo Grande, de Sandra Kogut. Mas são as negociações mercadológicas de sempre, incontornáveis e até necessárias em alguma medida.

- A exibição de A Pele de Vênus. Bom, exibiram o longa do Polanski numa projeção cagadíssima, inferior a qualquer rmvb vagabundo de internet. Uma tela pequena, encolhida no meio da tela da sala, com um excesso de brilho acabando com a luz do filme (luz que tem participação fundamental em sua construção dramática e teatral). Trata-se de um ótimo Polanski, no fim das contas, e foi isso que me segurou até o fim, pois em certo aspecto é como se eu ainda não tivesse visto o filme, pois aquilo não foi uma exibição, foi outra coisa, inominável.

- A falta de debates no Cine Lumière. Porque todos foram no Cine Cultura, o que não há nada de errado nisso, mas até por suas localizações (Cultura na Praça Cívica, centralizado; Lumière nos altos do Marista), os públicos são diferentes. Quem conhece o Cine Cultura, em suas boas e más fases, sabe que seu público já é acostumado a debates, a festivais, a palestras (ano passado, durante o Fronteira Festival, nada menos que Andrea Tonacci e Toni D'Angela estiveram lá para uma conversa/palestra/tradução, juntos, conversando com os espectadores). Debate em sessões do cine Lumière Bougainville é outra coisa, é ter oportunidade de analisar um filme, criticá-lo, debatê-lo, propor, desenvolver e pensar questões para e com um público que, no caso, já não está tão habituado a isso. Debates sempre foram programados para sessões do Lumière. Não sei por que tiraram isso desta edição, mas acho uma perda.

- O minicurso com Inácio Araújo. Aqui, as decepções se deram de duas formas: a primeira no que diz respeito à organização, que, pelo que entendi, estava toda sob responsabilidade da Mostra, o Cine Cultura apenas cedendo sua sala para a realização do curso. Mas informações chegaram de última hora (a necessidade de uma losa, salvo engano - e que não foi conseguida), improvisos para conseguir caixa de som e microfone tiveram de ser levados adiante, tudo, pelo que pude observar, a partir de esforços de Marcelo Ribeiro, programador da sala e que não teria tido uma trabalheira danada caso a Mostra estivesse mais preparada e mais precisa na comunicação com o próprio Cine Cultura. A outra frustração foi com o próprio minicurso: por mais que Inácio seja um dos grandes da crítica de cinema no Brasil, referência inquestionável e um dos que mais li em toda minha vida, ou seja, faz por onde ser respeitado, este seu minicurso de "análise fílmica" teve pouco de análise fílmica e de crítica; em parte, claro, porque os participantes ali eram, em geral, evidentemente iniciantes, o que levou o papo para um lado mais introdutório (o que é compreensível, mas aí o problema passa a ser, então, no anúncio do curso como sendo de "análise fílmica"). Já vi Inácio falar em outras ocasiões - sobre Godard, sobre Hawks, sobre Ford etc etc; acho que a primeira vez que o vi e o ouvi foi em 2002, na Amor Morte Paixões mesmo -, algo prazeroso e proveitoso mesmo para quem já entende de cinema, pois é interessante ver a maneira como o outro diz e enxerga coisas que você sabe e concorda, só que o outro diz ao seu próprio modo, o que sempre vou considerar muito rico. Desta vez, no entanto, pouco tempo de análise de fato (a exceção seria seu comentário colocando em paralelo Janela Indiscreta, Blow-Up e Blow Out). Inácio também decidiu exibir Only Angels Have Wings, de Howard Hawks, inteiro em suas 2h de duração, exibição que comeu 1/3 das 6h do minicurso. Não gosto nada de longas inteiros em cursos curtos (e mesmo nos maiores, com dias e dias de curso, acho questionável, embora a real necessidade possa se colocar na agenda), ainda mais hoje, com praticamente qualquer filme estando acessível para ser visto em casa; acho improdutivo, mesmo numa aula do Inácio - ou sobretudo, já que são 2h a menos que ele poderia estar falando e analisando.


ALTOS

- Por outro lado, a ideia de oferecer minicursos deve ser incentivada. Além de Inácio, trouxeram Fátima Toledo para um minicurso sobre preparação de elenco (este eu não pude acompanhar, não sei como foi). A Mostra AMP é visada, entra na mídia, é bem vendida e procurada, então quanto mais puder fazer pela formação do olhar (e de profissionais) daqui, melhor.

- As projeções. Impressão minha ou as projeções das salas Lumière Bougainville melhoraram consideravelmente? Salas 1 e 2 continuam as melhores, telas largas, ideais para exibirem um scope. Depois viria a sala 4, também com boa projeção (o digital estava particularmente cristalino nessa tela), mas às vezes pecavam no som, deixando-o muito baixo. Sala 5 normal, nada de mais. A sala 3 era a única realmente ruim, a mais sensível ao som das salas vizinhas e, pior, com a tela escura (estava irritante assistir a Macbeth por lá). Mas em comparação às edições anteriores e ao próprio histórico do multiplex, que vira e mexe chegava a projetar filmes na janela errada (nunca esqueço de quando exibiram Che do Soderbergh quadrado na tela, num 4:3, sendo que o filme é 2.35:1), este ano estava quase tudo em ordem.

- As sessões de clássicos brasileiros. Na verdade, é mais pelo retorno de alguns clássicos, pois as exibições de Macunaíma, Terra em Transe e Xica da Silva foram todas em DVD (alguns conseguidos de última hora, pelo que me disseram), o que é um tanto frustrante. Entendo as dificuldades de logística e, em alguns casos, de custo, mas se há uma lacuna dessas cinco últimas edições em relação às quatro primeiras, é a falta de um ou outro clássico na programação, preferencialmente em boa cópia. Em 2003 a AMP teve o privilégio de exibir O Desprezo do Godard em película (e com Ismail Xavier para comentar o filme pós-sessão), vejam só.

- Os debates. Sempre fizeram parte da Mostra. Acho que apenas umas duas edições não tiveram. São importantes, e desta vez foram voltados para os clássicos brasileiros. E pela primeira vez, até onde eu saiba, os debatedores - todos de Goiânia, inclusive eu - receberão cachês, o que também é importante e justo, uma valorização que é rara por aqui e, na verdade, em quase todo o país.

- A parceria com o Cine Cultura. Parceria ainda com seus problemas, como no que relatei sobre o minicurso com o Inácio, mas é uma colaboração que vem num momento importante para o Cine Cultura, que volta agora a ter um programador, alguém que sabe o que procurar e o que colocar na agenda de exibição do cinema e alguém que consiga pensar em maneiras de trazer o público de volta à sala, apesar do tão conhecido descaso da Seduce-GO com aquele lugar (estive lá recentemente, para além da sala em si, e é lamentável). O nome do Cine Cultura entrar como parte da programação, tendo sua sala e, acreditem, existência divulgadas é algo que espero que se repita nas edições futuras da Mostra.

- E, enfim, talvez o ponto mais importante de todos: os filmes. Esqueçamos as produções incomíveis: o que vale, apesar de pesares, é permitir que algum público daqui possa ver um Béla Tarr engrandecido pela sala de cinema, ou três raras exibições do Godard 3D, um irmãos Taviani, um Panahi, um Lav Diaz, entre muitos outros que, com ainda mais sorte, entram na programação normal do cinema algumas semanas depois.


Por fim, deixo abaixo o que vi (ou revi) na Mostra, com avaliações de 1 a 5, tanto para constar como registro como também porque alguns amigos me pediram (mesmo que eu ache cotações um resumo grosseiro e, no fim das contas, pateticamente consumista nos dias de hoje, como se o cinema pudesse ser espremido numa lista de supermercado a ser usada para guiar o espectador - espero conseguir escrever críticas sobre alguns lá na revista Janela):

  1. Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade, 1969) - 4/5
  2. O Cavalo de Turim (Béla Tarr, 2011) - 4/5
  3. Boi Neon (Gabriel Mascaro, 2015) - 3/5
  4. Carol (Todd Haynes, 2015) - 4/5
  5. O Regresso (Alejandro González Iñárritu, 2015) - 1/5
  6. A Pele de Vênus (Roman Polanski, 2013) - 4/5
  7. Joy (David O. Russell, 2015) - 1/5
  8. Victoria (Sebastian Schipper, 2015) - 1/5
  9. Três Lembranças de Minha Juventude (Arnaud Desplechin, 2015) - 3/5
  10. O Filho de Saul (László Nemes, 2015) - 2/5
  11. Maravilhoso Boccaccio (irmãos Taviani, 2015) - 3/5
  12. Periscópio (Kiko Goiffman, 2015) - 1/5
  13. Deadpool (Tim Miller, 2016) - 3/5
  14. Anomalisa (Charlie Kaufman e Duke Johnson, 2015) - 3/5
  15. As Mil e Uma Noites - Volume 1: O Inquieto (Miguel Gomes, 2015) - 3/5
  16. As Mil e Uma Noites - Volume 2: O Desolado (Miguel Gomes, 2015) - 2/5
  17. Taxi Teerã (Jafar Panahi, 2015) - 4/5
  18. Body (Malgorzata Szumowska, 2015) - 2/5
  19. Spotlight (Tom McCarthy, 2015) - 3/5
  20. La Sapienza (Eugène Green, 2014) - 4/5
  21. A Ovelha Negra (Grímur Hákonarson, 2015) - 3/5
  22. Steve Jobs (Danny Boyle, 2015) - 2/5
  23. Mr. Holmes (Bill Condon, 2015) - 1/5
  24. Mia Madre (Nanni Moretti, 2015) - 2/5
  25. Dheepan (Jacques Audiard, 2015) - 2/5
  26. Party Girl (Marie Amachoukeli, Claire Burger, Samuel Theis, 2014) - 2/5
  27. A Garota Dinamarquesa (Tom Hooper, 2015) - 1/5
  28. Nostalgia da Luz (Patricio Guzmán, 2010) - 3/5
  29. O Abraço da Serpente (Ciro Guerra, 2015) - 3/5

Filmes que estavam na Mostra e que eu já havia visto:




  • Pasolini (Abel Ferrara, 2014) - 3/5
  • Mad Max: Estrada da Fúria (George Miller, 2015) - 5/5
  • Norte, o Fim da História (Lav Diaz, 2013) - 4/5
  • Adeus à Linguagem (Jean-Luc Godard, 2014) - 3/5
  • Mistress America (Noah Baumbach, 2015) - 2/5
  • Garota Sombria Caminha pela Noite (Ana Lily Amirpour, 2014) - 3/5
  • Órfãos do Eldorado (Guilherme Coelho, 2015) - 2/5
  • Os Oito Odiados (Quentin Tarantino, 2015) - 3/5
  • Sicario (Denis Villeneuve, 2015) - 2/5
  • terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

    19ª Mostra de Cinema de Tiradentes

    Taego Ãwa, de Henrique e Marcela Borela

    Usando o gás da 19ª Mostra de Cinema de Tiradentes pra tirar a poeira disso aqui depois de sei lá quanto tempo. Ajuda a organizar o pensamento e, bom, a liberdade de escrever mais molecamente e sem muito compromisso também faz bem.

    No geral, foi uma Tiradentes bem mais interessante que a do ano passado. As paralelas ajudaram, esquivando-se de nulidades como A Despedida de Marcelo Galvão ou Órfãos do Eldorado do Guilherme Coelho, presentes na edição anterior. Aparentemente, ninguém gostou do novo do Ruy Guerra (não vi, cheguei depois), que dizem ser desastroso, mas por ser do Guerra valeria a curiosidade de amassar a cara na parede; ou não?

    Debates melhores também. Teve até breve barraco no de Filme de Aborto. Ademais, o Hernani Heffner fez, com toda aquela fala calma e esclarecida, uma das melhores apresentações de toda a Mostra durante a mesa "Espaços em Conflito", tema desta edição. Heffner fez todo um histórico do "filmar o inimigo", resumiu caminhos do neo-liberalismo e ainda lembrou do "Poeira de Estrelas" do Moacyr Fenelon, vejam só. Deve ter sido ponto alto dessas mesas, ao lado da fala do Tonacci no segundo dia (e que também perdi).

    Sobre a Aurora, também um conjunto forte, mesmo tendo aqueles com os quais chego a ter quase uma aversão. O primeiro a ser exibido, Índios Zoró - Antes, Agora e Depois?, do Luiz Paulino dos Santos (roteirista de Barravento, do qual passou perto de dirigir), tem seus momentos, mas a cada dia ele se esvai na minha memória, o que é uma pena. Já escrevi sobre ele na revista ] Janela [, crítica em que talvez eu tenha sido generoso demais.

    O segundo, Aracati, de Aline Portugal e Julia De Simone (e tem coprodução da Alumbramento, esse nome forte lá da cena cearense), me encantou e ainda me encanta. Filma o tempo e parece vir dele, encontrando um ritmo de passagem que não sai da minha cabeça. Dividiu opiniões e pode acabar sendo criticado por sua plasticidade, mas tô longe de seguir esse caminho. Também escrevi na ] Janela [.

    A terceira sessão da Aurora foi reservada ao longa goiano Taego Ãwa, de Henrique e Marcela Borela, salvo engano a estreia de Goiás na Mostra. Talvez tenha sido meu preferido da competitiva. É atrevido sem deixar de ser delicado; atrevido não por adotar um enfrentamento sangue no olho, mas por evitar o lamento fácil e olhar pra frente, meio que propondo cruzar uma fronteira ainda mais complicada que a demarcação territorial: fronteira do tempo, geracional. É preciso ter coragem para se ter esse tipo de esperança e encerrar um filme tão pesado com um plano final de crianças indígenas brincando ao horizonte. Crítica completa aqui.

    Banco Imobiliário, de Miguel Antunes Ramos, inicialmente me atrai por lidar cara a cara com essa cultura do prédio e essas imagens de propaganda de investimento imobiliário. Miguel é da turma que realizou os curtas E. e O Castelo (também exibido em nesta Tiradentes) tem essa visão um tanto interessante de olhar pro concreto hoje como se fosse de um futurismo broxante e cafona. Até aí tudo bem. Mas os curtas são melhores e mais safos; neste longa, Miguel entrevista vendedores e tanto algumas abordagens quanto a montagem parece se colocar alguns degraus acima desses personagens, ridicularizando-os e dando-lhes rasteiras. Miguel e equipe disseram se surpreender com as risadas durante a sessão, demonstrando não terem percebido algo que, ao menos para o espectador, aparecia como ironia e humor evidentes (e, em parte, questionáveis). Inevitável lembrar das questões éticas na realização de Um Lugar ao Sol, de Gabriel Mascaro; só que Mascaro era mais esperto naquele seu documentário, dava pra perceber que assumia aquela postura desde o princípio, disposto a apanhar por ela.

    No mesmo dia de Banco, teve Filme Aborto, o "filme que causou" nesta edição. Dizem que todo ano tem um desses em Tiradentes; o de 2015 teria sido Medo do Escuro, do Ivo Lopes Araújo, um cine-show que, mesmo cambaleando, se revelava uma puta experiência. Filme de Aborto, de Lincoln Péricles (de quem aprecio Homem na Estrada e só), me parece desses filmes esquivos (como bem apontou e questionou o Krefer durante o debate, questionamento legítimo porém não muito bem recebido; ironicamente, a própria resposta de Lincoln - "não entendo o que quer dizer com esquivo" - parecia uma esquiva), a serem defendidos pelo seu tema - importante, urgente, necessário etc, mas e o cinema? - e sem muito para ir além. Ruptura da linguagem dominante e "cinema pedreiro"? Ermmm, ok. Mas acho que desconfio desse discurso ideólogo da imagem como uma espécie de novo caminho de "linguagem revolucionária" ou algo do tipo sempre que lembro do Hurlements en faveur de Sade (1952, mais de meio século atrás), o filme anti-imagem do Guy Debord, em que por cerca de 1h só há tela branca e narração over. Em certo sentido, é um saco, e em outro sentido, uma obra-prima da ruptura máxima (daria pra incluir o Critique de la séparation e o In Girum... no mesmo bolo, aliás). Filme de Aborto me pareceu ser só um porre, mesmo eu sendo pró-escolha - porque, quando se faz filme, identificá-lo como legítimo e concordar com ele é o de menos. Daí a produtora, coroteirista e atriz Talita Araújo, na sua primeira fala do debate no dia seguinte, diz algo como: "Eu adoraria que nós discutíssemos aborto aqui e não o filme". Nada mais esquivo que isso durante um festival de cinema. Mas, enfim, há quem goste e defenda, e isso também interessa.

    No último dia teve Jovens infelizes ou um homem que grita não é um urso que dança, de Thiago B. Mendonça. Gosto de Piove, il film di Pio, curtinha singelo de Thiago. Neste longa, ele faz um liquidificador de emblemas e ícones (figuras, temas, símbolos, discursos) da esquerda numa narrativa de trás pra frente movida por um grupo artístico revolucionário autointitulado "Os Terroristas". Não se sabe até onde vai a ironia e o lamento (o Cabaré Vermelho prestes a fechar, por ex), a utopia (palavra-chave) de discursos e a realidade na porta de casa e no colo de cada um (militância X paternidade é um conflito colocado no filme em dado momento). Por certo tempo, isso funciona, dá um ritmo interessante conforme tenta-se decifrar esse grupo e esse filme que sabe olhar pra Carlos Reichenbach, escutar Tonacci e zombar de polícias e de um político cópia de Alckmin. Flerta com o cinema marginal mas também sofre de sua exaustão (as repetitivas cenas de orgias...), a ponto de perder o passo. Confesso achar estranho o final, em que um travelling na parede do bar Cabaré Vermelho parece igualar a trupe a fotografias/quadros de Che e imagens do comunismo; na escorregadia ironia, me parece um tanto narcisístico, sob o risco de sabotar seu êxtase final e praticamente incondicional, o que seria lamentável dado que não se trata de um filme qualquer. Esse desfecho a cantar "É preciso destruir pra começar de novo" é fácil de abraçar, e como o exercício crítico se dá em todo lugar, foi conversando e dançando com João Toledo e Laila Pas na sessão-dança Being Boring que esse tipo de questionamento surgiu. O debate do filme tomou caminhos de incontestável aprovação, o que é um tanto frustrante para o acúmulo de discurso político que o filme traz.

    Fechando a Aurora, o esperado Animal Político de Tião, que demorou cinco anos pra fazer, já que filmar uma vaca em locais públicos e dentro de shoppings não é exatamente um mel para a produção. É engraçado como isso que já chamam de "grife pernambucana" (evito o termo, acho meio bobo, mas entendo o uso) faz com que se crie uma expectativa em cima de um realizador com poucos curtas. Muro é um acontecimento, sem dúvida, e Sem Coração não é pouca coisa, mas você chega pra ver o primeiro longa do cara, pira um pouco com aquilo, identifica algo de "filme único" (como o Rubens Machado Jr. mesmo definiu o filme durante o debate) na cinematografia brasileira e ainda sente que falta alguma coisa. Animal Político é a prova de que espera-se demais do cinema pernambucano? Eu veria de novo sem pestanejar, aprecio a crítica mordaz (A Pequena Caucasiana, o filme grindhouse dentro do filme, é um achado) e a simplicidade da acidez, mesmo que um tanto óbvia, do casting bovino, mas talvez a expectativa estivesse um tanto acima. Abertura incrível, de todo modo. E, sim, gostei bem.

    ***

    Vi pouco da Mostra Transições. O baiano Tropykaos, de Daniel Lisboa, por exemplo, longa que me irritou durante quase todo o tempo em sua repetitividade, um cãozinho a girar em torno do próprio rabo. Começa curioso, tomando Salvador como uma cidade a ser atingida por um calor inigualável e partindo daí para o que seria uma crítica à baianidade clichês. Mas é tudo tão literal, tão insistente, de imagens a se desgastar minuto a minuto, que soa juvenil e sem muito o que dizer depois de 15 minutos. Saí da sessão e reli a crítica de Júlio só pra confirmar todas essas sensações.

    Porém, o também baiano A Noite Escura da Alma, de Henrique Dantas, foi ainda mais difícil, talvez o ponto mais baixo de todo o festival. Começa bem, imagens de arquivo do carnaval (baiano, imagino) e a voz de Dantas, bem pessoal, introduzindo sua relação não tão distante com a ditadura. Tem força, mas logo, em questão de pouquíssimos minutos, entra numa onda de encenar performaticamente torturas e "números de protesto" contra a ditadura, intercalando isso com depoimentos de uma certa elite sobrevivente (professores, artistas, jornalistas etc) e banhando seu documentário com uma estética algo publicitária capaz até mesmo de embelezar uma barata. É verniz demais pra falar de horror, chegando a ser abjeto. Pelo menos desde o Noite e Neblina (1955) do Resnais já se tem noção das complicações de "filmar" o horror de tal maneira, e saí da sessão de A Noite Escura da Alma com a impressão de terem passado esmalte no horror, por mais bem intencionado que o documentário seja.

    Também vi Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois, novo longa do Petrus Cariry e que encerra sua "trilogia da morte", da qual gosto muito de O Grão e tenho meus problemas com o Mãe e Filha (mas pode ser porque não embarquei naquele papo de "o Sokurov brasileiro" que alguns tentaram vender). Clarisse... é potente e começa literalmente explosivo. É filme capetoso, como todos da trilogia de alguma forma são. Climão satânico maneiro, evidenciado pela chuva e ventania que encobriu o Cine-Tenda, o vento chegando a balançar a tela. Cariry definitivamente não economizando na tristeza marmorizada no rosto de Sabrina Greve e muito menos no sangues e nos urros de porco. Quero ver de novo.

    Depois falo de alguns curtas. E escrevo melhor na ] Janela [.

    domingo, 16 de novembro de 2014

    Rapidinhas brasileiras




    Pra tirar a grande camada de pó, umas rapidinhas sobre filmes brasileiros que vi nos últimos meses, a maioria em função da cobertura do VII Janela Internacional de Cinema do Recife que fiz pela revista ] Janela [.

    ..

    PERMANÊNCIA, de Leonardo Lacca

    Gostei de Permanência. Gosto dos desconfortos à procura de algum sabor, da intimidade hesitante, das lembranças que buscam tempo e lugar, do pouco esforço em pontuar as diferenças culturais entre Recife e São Paulo, do movimento dos corpos (a atendente/secretária da galeria de arte que demonstra interesse pelo fotógrafo com uma virada de cabeça lá no cantinho do enquadramento mais aberto, por exemplo).

    O filme, claro, não é perfeito. Me pergunto se havia mesmo necessidade de pintar o personagem do marido de Rita como um bananão, um pateta de babaquice contida e portanto completamente desinteressante frente ao papel de Irandhir. Aí é fácil.

    Mas o longa de Leonardo Lacca pode ganhar por saber lidar com sentimentos e comportamentos familiares, por saber identificar com certa naturalidade uma situação delicada entre um (ex)casal, o que o diretor já fazia no curta Décimo Segundo (2007), espécie de ensaio para Permanência.

    Fora isso, é mais uma oportunidade para se apaixonar por Rita Carelli, e descobrir a nova paixão que pode ser Laila Pas (deveria existir viagem no tempo só para que Pas pudesse voltar aos anos 1960 e ter um filme da nouvelle vague só pra ela). Também dá pra se apaixonar por café derramado em abdômen feminino.


    SANGUE AZUL, de Lírio Ferreira

    Saí da sessão gostando e hoje não sei mais. Acho que o maior mérito é o de ser todo filmado em Fernando de Noronha e mesmo assim não cair na armadilha de filme cartão postal. E se esse é o maior mérito então temos um problema. Ou vários.

    É um filme que tinha tudo pra ser bonito, nos sentimentos, nas sensações, no peso das relações ali dispostas. A história do homem-bala (Daniel de Oliveira, filmado por Lírio como o cara mais sarado e desejado do mundo - e no filme o mundo é, de fato, uma ilha, o que só radicaliza o cenário) que volta a trabalhar com o circo onde foi criado e reencontra a irmã na pequena turnê pelo pedaço paradisíaco de Pernambuco, despertando um tesão complicado, é tratado por Lírio com certo lirismo e tentativas de poesia, mas um carimbo de melodrama Rede Globo parece sempre querer se apoderar de tudo ali.

    Embora tenha vencido o Festival do Rio deste ano, terá o mesmo destino de Árido Movie, do qual ninguém mais se lembra?

    Bom, Lírio sempre terá Baile Perfumado.


    A HISTÓRIA DA ETERNIDADE, de Camilo Cavalcante

    Relações conflitantes com o primeiro longa de Camilo Cavalcante, que tem extensa carreira no cinema de durações menores. Cineasta pernambucano de experiência e que demorou a chegar ao longa, portanto grande expectativa, ainda mais no cine São Luiz, lotado, equipe, conhecidos etc, aquele tipo de sessão em que é preciso identificar o que seria comoção automática e o que não seria.

    Impressão é o de um filme duro, preso, pouco fluido no geral. Engessadíssimo, mas só até se soltar completamente numa cena em que Irandhir Santos, o artista da pequena vila sertaneja que dá lugar à história, canta Secos e Molhados numa performance a céu aberto. A câmera gira ao seu redor, o artista que faz o mundo girar, e Cavalcante parece ter amarrado seu filme para que pudesse existir em função deste momento. É uma cena curiosa e ao mesmo tempo problemática: se Irandhir é grande o bastante para carregá-la (e seria feita se ali estivesse outro ator? Um ator que não estivesse em fase tão presente, querida e badalada?), a cena existe para ser A CENA, para comprar a emoção, levantar o público, baixar sua guarda com golpes forçados. Mas tem Irandhir, e ele é bom, muito bom.

    O mesmo vale para a cena em que a menina sonhadora é levada a "enxergar" o mar. Câmera giratória se repete, há quase uma vontade de ser um plano-sequência (o sertão dando lugar às águas seria algo incrível sem o uso do corte, mas não vejo como seria possível no contexto da produção), e a negociação emocional de novo se faz presente, desta vez arrancando aplausos durante a sessão. Nada contra catarses, mas A História da Eternidade tem um jogo emocional complicado, que pressiona a fim de não dar espaço para outras sensações.

    *Dias depois fui ao Cais do Sertão, novo museu do Recife, dedicado à cultura nordestina e sobretudo pernambucana. Há uma instalação de Camilo por lá, intitulada "Retratos", que consiste em 48 depoimentos de nordestinos contando parte de suas histórias de vida (há inclusive um muito célebre e importante, só procurar). Assisti a uns seis deles, a maioria capaz de levar a uma emoção autêntica, de dentro, sem muito esforço e que levarei comigo muito mais que as tentativas do longa.


    PROMETO UM DIA DEIXAR ESSA CIDADE, de Daniel Aragão

    Até passei a repensar Boa Sorte, Meu Amor (2013), longa anterior de Aragão. Teria o preto-e-branco dosado seus excessos e histrionismos? Mas Aragão só parece saber filmar desse jeito, nos efeitos máximos, na saturação, na luz solar de farol de Scania que vem do fundo e parece obstinada a nos cegar. É estilo, mas pode ser estilo que começa a irritar já neste segundo longa, para mim algo próximo do desastre e que, com esses cacoetes, sequer se distancia daquele seu curta Solidão Pública, seu trabalho mais egóico.

    Para impressões um pouco mais completas, tem a crítica na Janela.


    SINFONIA DA NECRÓPOLE, de Juliana Rojas

    Talvez minha maior frustração do Janela do Recife, quem sabe do ano. O filme é produto de um telefilme feito para a TV Cultura, só que na versão de cinema pouco consegue escapar das nítidas amarras televisivas ao qual fora originalmente submetido. Tudo muito fechado, apertado, um humor bobo e que costuma nascer repetitivamente do protagonista abobado. Não pega, não engata, por mais que tenha a astúcia de sugerir uma reflexão sobre especulação imobiliária a partir de um enredo que gira em torno da reestruturação de um cemitério. E sendo um musical, claro. Soa promissor (e é, demais), porém a instigante combinação "Juliana Rojas + cemitério + musical" fica no meio do caminho, um tanto murcha.

    Ainda assim, inegável que o Filmes do Caixote tem o cinema mais interessante produzido em São Paulo hoje, provavelmente.

    Ademais, tendo a concordar com o Júlio.


    OBRA, de Gregorio Graziosi

    Desse eu queria gostar mais. Começa muito bem, potente, fazendo tremer as paredes de um cinema gigante como o São Luiz, os prédios tomando campo na tela. É um filme de verticalização, de concreto, de arquiteto, filmado na base de régua e esquadro, o que ironicamente também passa a sabotá-lo, pois insiste tanto na sua forma como caminho para a profundidade que logo se torna redundante e exibido demais. No entanto, tem seus méritos e interesses, inclusive o de colocar Irandhir numa atuação atípica, robótica, concentrada, domada, o que pode incomodar alguns, mas é bom ver o ator coringa do cinema alternativo de maior acesso em papel um tanto "às sombras"; o que não trai o talento de Irandhir, jamais, ele que, como o próprio Graziosi diz, consegue parecer protagonista num filme de múltiplas narrativas como O Som ao Redor.

    Mais impressões lá no texto da Janela.


    A MISTERIOSA MORTE DE PÉROLA, de Guto Parente e Ticiana Augusto Lima

    Coisa mais porrada e estranha do VII Janela do Recife. Estranha no bom sentido. O novo filme da Alumbramento foi lançado no festival e, não obstante o começo casinha de bonecas, todo requintado, logo tomou o São Luiz com o impacto que um bom cinema fantasma tem de ter. É filme maldito dos bons, com pelo menos uma cena inesquecível de guarda-roupa escuro.

    Escrito, filmado, atuado e produzido por Guto e Ticiana. Um feito.

    Mais sobre ele no meu texto da Janela.


    BRASIL S/A, de Marcelo Pedroso

    O novo de Marcelo Pedroso eu só fui assistir após o Janela de Recife, na Mostra Canavial de Cinema, mais especificamente em Goiana, na Zona da Mata Norte, um dos oito municípios percorridos pela Canavial este ano. Sessão peculiar, pois Goiana está em região canavieira e agora vem se transformando em pólo industrial, com uma fábrica da Fiat impossível de ignorar na chegada à cidade.

    Adepto do cinema peito aberto e linha de frente, Pedroso aponta seus dedos justamente para esse processo de industrialização, uma pegada acusatória decidida a enfrentar aquilo que uma nublada ideia de progresso teria de mais daninho. Pedroso literalmente mira seus raios exterminadores para uma classe média de outdoors imobiliários maquiados, os hoje conhecidos como coxinhas e que o cineasta faz queimar feito formigas sob uma lupa. Jogo duro.

    Há, no entanto, o alto risco de Brasil S/A conversar apenas com os já devotos, com aqueles dispostos a confirmar suas posições. Não que eu acredite que Pedroso se preocupe com isso. Seu cinema é assumido demais, e em certa medida é isso que o faz tão interessante, por se colocar em marcha de ataque de rinoceronte desde o começo e não dar trégua (o curta Em Trânsito já deixava isso claro). Fala das mesmas coisas que O Som ao Redor, por exemplo (e, em larga escala, dos mesmos incômodos do Recife/Brasil atual), só que em outro extremo, sem nenhuma discrição.

    Durante a sessão pode render entusiasmo - sobretudo porque realmente possui momentos de grande cinema, como a sequência do Transporte Cegonha (não lembro se é este o nome correto), o maracatu vitoriano e a coreografia dos tratores -, e o aspecto quase operístico do filme me levou a pensar que Pedroso sugeria ali um novo Hino Nacional, cinematográfico, mas alguns dias depois dá uma encolhida. O desfecho, por exemplo, já não sei se simpatizo, se não passaria de uma provocação meio juvenil (de cabeça erguida, contudo; respeito), e que mesmo no balaio das provocações ficaria atrás de um curta tão curioso, e muito mais inspirado, como Zigurate (2009).


    BRANCO SAI, PRETO FICA, de Adirley Queirós

    Esse é grande. Não maior que A Cidade É uma Só? (2013), mas grande. Já ensaiei escrever algo mais elaborado sobre e até hoje não me arrisquei.

    É um documentário, e um documentário gradativo dentro de sua hibridez. Cinema híbrido anda em alta, moda, e Adirley está acima do modismo (e modismo não significa necessariamente uma desvalorização, ou não deveria, só pra constar).

    Nas fotos do baile no Quarentão, nos depoimentos em off e, depois, de frente para a câmera, Branco Sai, Preto Fica clareia sua faceta documental, porém sempre inserida não apenas num contexto ficcional, mas de ficção-científica. É um dos filmes mais engenhosos do ano, uma sci-fi que nasce em Ceilândia, periferia do Distrito Federal, e que somente por meio da proposta dessa reinvenção do gênero, ou seja, por meio do cinema, é que encontra um meio de promover justiça.

    Tem bomba de música. Tem container máquina do tempo. Tem viajante espacial que canta Roberto Carlos. Tem um final que, de tão incrível e destemido, pode até ser mal interpretado.

    Adirley fez uma ópera rap sci-fi periférica. Um filme bem único por aqui.


    CASA GRANDE, de Fellipe Barbosa

    Tem pelo menos dois dos melhores planos do nosso cinema este ano: o primeiro é o de abertura, um plano geral da casa classe média alta ao anoitecer, com Marcelo Novaes dando uma escorregada após sair da piscina; as luzes se apagando, e a luz do banheiro (ou quarto?) de Jean acendendo.

    O outro, sem dúvida, é o plano aberto da área externa da casa, no meio do filme, com a profundidade de campo e de foco permitindo observar os quatro personagens dispostos no quadro, todos de alguma forma chamando a atenção para si. Quem observar? Como absorver o plano todo de uma vez, sabendo ser impossível, mas a dinâmica de cena se revelando irresistível, ainda mais por reservar momento memorável na carreira de Novaes (escolha perfeita para um filme que pega estética e chavões de novelas Rede Globo e coloca de cabeça pra baixo).

    Dá pra questionar muita coisa em Casa Grande (vide texto de Júlio), mas é como se Fellipe Barbosa tivesse sequestrado Malhação e transformado em bom cinema.

    PS: o título internacional é Casa Grande or the ballad of poor Jean. Bonito.

    quarta-feira, 14 de maio de 2014

    Olho Nu no Cine Cultura



    Deve dar muita gente pra ver Olho Nu, documentário sobre Ney Matogrosso, no Cine Cultura, e é bom que dê. Não gosto do filme, mas pra quem quiser passar pelo menos uma semana cantarolando nada mais que Ney (e Secos e Molhados, claro), disso ele é bem capaz.

    Cantar Ney só pode ser bom, qualquer um de bom juízo diria. É uma quase verdade. A exceção é a sala de cinema, pois esses documentários a serviço de bandas e músicas envolventes costumam sofrer com a invasão daqueles espectadores que fazem questão de cantar juntinho, como se estivessem num show. Querem mostrar que sabem a letra, que aquele filme é só pra ele, o maior fã presente naquela sessão. Se não cantam, às vezes batem os pezinhos, acompanhando o ritmo. Ou uma garrafinha d'água entre as mãos.

    Um ano atrás, numa sessão de Tropicália, de Marcelo Machado, no cine Lumière do Shopping Bougainville, tinha um desses. Sujeito barbudo, homem feito, batucava o plástico como se aquilo não pudesse incomodar outros ali presentes. Enfim, virou uma das minhas muitas histórias de confusão no cinema, de ter de chamar segurança e tudo o mais.

    Pô, cantem Ney. Faz bem pro coração, eu sei. Mas na sala de cinema, cantem internamente. A poltrona vizinha agradece.

    quinta-feira, 1 de maio de 2014

    Hoje Eu Quero Voltar Sozinho


    Quando ternura é força

    A que cabe o crescente interesse por Hoje Eu Quero Voltar Sozinho (2014) senão aos seus próprios esforços? Sem celebridades, sem apadrinhamentos, sem transitar pela grade de uma rede de TV, sem ser mencionado em horário nobre, o primeiro longa de Daniel Ribeiro caminha para 100 mil espectadores em sua segunda semana em cartaz, aumentando agora o número de cidades em que estreia.

    Com apenas 33 cópias iniciais e agora já com 56, números dos mais significativos para uma produção nacional independente, é interessante como o filme vem furando o bloqueio desses blockbusters que ao menos uma vez por mês chegam para ocupar metade das salas do país numa distribuição colossal cujo propósito é sufocar o mercado e lucrar a partir disso. Disputando bravamente seu lugar, Hoje Eu Quero Voltar Sozinho chega em meio a Rio 2, Noé e Capitão América 2.

    Também temos aqui um exemplo contrário à lógica de mercado que domina o próprio cinema brasileiro. O trio protagonista - Guilherme Lobo, Tess Amorim e Fabio Audi - pode até apresentar rostinhos que estariam facilmente escalados na Malhação, mas os jovens atores vêm de um quase completo anonimato para enriquecer com rara sensibilidade uma dramaturgia que se propõe a olhar para a juventude. Num cenário em que sucesso de bilheteria parece se resumir a comédias chupadas de ibope televisivo (basta uma olhada nas dez maiores bilheterias brasileiras do ano passado, é deprimente), levando espectadores ao cinema sem que de fato os tire da programação do sofá de casa, Hoje Eu Quero Voltar Sozinho conquista uma posição a ser notada.

    Não que seja um filme perfeito. A história de um garoto cego e gay que se apaixona por seu novo colega de classe sofre inclusive de certo protecionismo que o próprio diretor e roteirista parece preocupado em criticar. Praticamente situado em três ambientes base - casa de Leo, colégio e um acampamento escolar -, o filme pouco permite que seus personagens principais interajam com o universo externo, com pessoas de cotidiano que pudessem adicionar cor às suas vivências, sobretudo se considerarmos que é São Paulo, mesmo que num bairro nobre de classe-média. É difícil, assim, evitar que às vezes tudo pareça fantasioso e corretinho demais, como se o mundo não lhes pudesse ser mais nocivo que o bullying na escola.

    Ainda assim, estamos longe do nível comercial de margarina. Por mais que os devidos recados sejam transmitidos de forma muito clara, configurando um filme de puras boas-intenções, me parece ser a representação do jovem e suas preocupações, tão corriqueiras quanto mundanas, a real riqueza do que se vê em Hoje Eu Quero Voltar Sozinho. O adolescente exposto, seja ele homossexual ou não, deficiente ou não. As paixões de colégio, os amigos confidentes, os ciúmes de amizade, o sentir-se abandonado, os colegas irritantes, a sexualidade ainda verde, as festinhas, os trabalhos no quarto, a vergonha da nudez, os pequenos conflitos com a família e, talvez das coisas mais interessantes a ser explorada pelo roteiro, o desejo de ver e conhecer o mundo.

    Com seus 31 anos, não faz tanto tempo que Ribeiro deixou para trás essas agruras. Às vezes parece dirigir uma espécie de diário, misturando ficção a lembranças que poderiam ser suas. Seu filme tem essa capacidade de aproximação, um elemento de identificação muito forte. Leo não enxerga, Leo é atraído pelo mesmo sexo, mas Leo também é só um menino. Um menino que vai ao cinema, por sinal.

    Ribeiro realiza aqui um desdobramento de seu curta de 2010, Eu Não Quero Voltar Sozinho, muito visto na internet e festivais, sobretudo de temática LGBT, algo que o filme tira proveito, é verdade, mas além de ser inevitável, talvez seja necessário. Uma temática que parece vir, no entanto, meio que por acaso, tanto que a característica da cegueira é o grande elemento de discussão e distinção dentro da história. A homossexualidade vem no embalo, simplesmente porque sim, e todos os problemas que decorrem dela poderiam ser problemas de qualquer demonstração sexual.

    O que Ribeiro nos destaca é o sentimento acima de tudo. A câmera que foca na audição de Leo assim que a voz de Gabriel se faz audível pela primeira vez é a força de tudo o que vem a seguir. O restante deve a uma direção segura do que colocar na tela, mesmo quando a situação pode se revelar esquemática (penso aqui nos dois dançando Belle and Sebastian no quarto), de alguma forma parecendo acreditar inclusive em seus momentos mais vulneráveis, pois ternura há de sobra por aqui.

    Um filme de carinho. Às vezes faz bem.

    quinta-feira, 24 de abril de 2014

    A Grande Beleza


    Roma, publicidade aberta

    Uns tantos gostam, outros tantos não gostam. Com este não parece haver meio termo. Na verdade, reformulo: o time dos que são felizes com o filme parece ser maior.

    Eu não gostei nada, confesso. Bom, pra não dizer que nada ali me agrada, simpatizo bastante com o Toni Servillo no papel do escritor-de-um-livro só Jep Gambardella. Mas paro por aí.

    O que pega pra mim é Sorrentino ser tão clichê em suas escolhas nas 2h20 - que mais parecem 8h - que usa para refletir sobre o vazio da burguesia elitista da Itália contemporânea. Itália de hoje, sim, com seus Macs, iPhones e festas de toque eletrônico, mas que acaba dando aquela olhada sobre o ombro, seguida de piscadela, para A Doce Vida (1960), de Fellini, reflexo mais evidente neste filme que tenta muito, mas muito mesmo, honrar um "cinema italiano anterior".

    O Marcello Rubini interpretado por Marcello Mastroianni tomaria uns drinks com Jep numa boa, aliás. Falariam de mulheres, literatura, italianices, ócio. Daria outro filme, provavelmente mais curto e melhor.

    Enquanto Jep, já com mais de 60 anos, resiste em voltar a escrever, insistindo no bonvivantismo que fez de sua vida em Roma, participando de festas, visitando manifestações artísticas diversas (da mais atual e questionável performance moderna aos clássicos lapidados) e discutindo a vida com e dos amigos, Sorrentino filma suas idas e vindas sociais como se tivesse de cumprir algumas exigências para que seu filme venha a atingir o nível de "excentricidade" (felliniana? Quisera ele; porque um dos brilhos de Fellini era transformar o "excêntrico" em algo seu, portanto felliniano) esperado. Elementos como a editora anã e duas cenas envolvendo animais - uma girafa e um conjunto de flamingos - parecem surgir por obrigação. "Tá muito normal ainda, põe ele pra encarar uma girafa", talvez esteja anotado à caneta no roteiro original.

    Esses animais, por sinal, trazem na garupa uma ou duas lições de moral que tratam de deixar a segunda metade desse longo filme ainda pior. O mágico que diz que, se soubesse fazer pessoas desaparecer, já não estaria mais entre nós, e, constrangimento dos constrangimentos, a santa desdentada explicando o porquê de comer apenas raízes e, em seguida, soprar as aves para longe. E a câmera do Sorrentino ali, viciada em sua elasticidade, repetitiva, quase um estilingue ao aproximar-se ou distanciar-se de pessoas ou objetos.

    Também damos de cara com o imenso desejo de fazer de A Grande Beleza uma crônica de Roma e de tudo o que uma capital dessas poderia oferecer (oferece Fanny Ardant, por exemplo, que, embora francesa, já teve seus affairs com o cinema italiano, sobretudo com Ettore Scola). Nada contra filmar uma cidade como Roma. Até um pouco inspirado Woody Allen conseguiu. Impressão aqui, no entanto, é que a grande Roma, por mais bela e histórica que seja, é usada por Sorrentino como estratégia de compensação. "A SACADA DE SEU PRÉDIO É DE FRENTE PARA O COLISEU", o movimento de câmera parece gritar, como se precisasse nos esfregar na cara que, embora tenha vista VIP para uma das maravilhas do mundo, Jep não está imune à decadência (humana, intelectual, corporal, enfim...). Não por acaso, depois do "the end" só dá imagens pelo rio Tevere, muito mais vivas que o desfecho recado-aos-mais-jovens, versinho juvenil que se esforça para, no último gole, sublinhar A Grande Beleza como um possível filme de amor e arrependimento.

    O filme ainda me parece extremamente mal montado. Um excesso de cortes, às vezes beirando a montagem desses blockbusters de ação. E a luz, tentando encontrar uma perfeição absoluta em tudo, me fez pensar em algo encomendado por agência de publicidade, uma Roma de calendário que se manifesta na tela.

    Se jogado no WinRAR, talvez A Grande Beleza reaparecesse como uma versão estendida de comercial da Campari. Porque, voltando a Fellini, que tanto respira na nuca do longa de Sorrentino, por sua vez um Fellini edição Martin Claret, acredito que seja como o José Miguel Wisnik conclui na sua coluna do O Globo: "Fellini elevou o kitsch sentimental ao sublime. A Grande Beleza reduz o sublime ao kitsch."

    sábado, 12 de abril de 2014

    Eles Voltam


    Era uma vez eu, Cris

    Pronto desde 2012, quando venceu o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (ao lado de Era uma Vez Eu, Verônica, de Marcelo Gomes), Eles Voltam, mais um da grande safra pernambucana, finalmente ganhou tem rodado pelo país. É distribuído pela Vitrine Filmes, responsável por circular alguns dos títulos nacionais mais importantes dos últimos dois anos, no mínimo, além de estrangeiros que todo mundo deveria ver, como o argentino Las Acacias e o uruguaio La Vida Útil.

    Em breve comentário sobre Eles Voltam, o Inácio Araújo comentou em seu blog na Folha que havia uns tantos de Kiarostami, Hitchcock, Bresson, Rossellini e, puxando o Alcino Leite pra conversa, também Antonioni no filme de Marcelo Lordello, todos nomes que tendo a concordar, com maior ou menor intensidade. Pensando bem, o Hitchcock eu não chego a ver ali, mas é um trabalho capaz de dialogar com toda essa gente grande, sem dúvida.

    Mas faz mais de uma semana desde que assisti a Eles Voltam no Cine Cultura e a lembrança de Truffaut ofusca todos esses. A menina sozinha, depois encontrada e desencontrada; as companhias inesperadas; o sono solitário e independente, quase atrevido; o flagrante na piscina e, pouco depois, já na água, as curtas conversas aparentemente desimportantes sobre a vida; a visita à praia, entre família e uma recém conhecida; os estranhos retornos, reencontros, a menina já um tanto diferente, e incapaz de não contestar frente a frente outra geração (porque, tão jovem, sente que a breve experiência vale tudo, e talvez não esteja de todo errada), à mesa do café da manhã, farta e talvez excessivamente acolhedora.

    O que se tem aqui, a princípio, é um filme de abandono. Um casal de irmãos largado pelos pais à beira da estrada. Uma lição aplicada por conta de uma briga, supõe-se. Lá são deixados, e lá devem se virar. Ele, mandão e pouco paciente, mais velho, se vira primeiro. Ela, de nome Cris (Maria Luiza Tavares), então sozinha, toma seu rumo. Encontra pessoas, faz amizades tão fáceis de evaporar, conhece gente e lugares que provavelmente não conheceria não fosse o acaso do abandono inicial. Porque, de certa forma, Eles Voltam é também sobre o protecionismo sufocante, as preocupações de estar "solto por aí" em "lugares que nem se imagina", e não num carro, num condomínio ou atrás do portão gradeado duma garagem.

    Acho que a primeira meia-hora, ou quase isso, é toda na estrada, quase sem falas. Lordello toca esse começo tão bem, dando tempo às cenas, ao rosto pensativo e intrigante - ela nunca se desespera - de Maria Luiza, que embora me lembre Truffaut em sua trajetória, talvez tenha olhos de Godard (do nada, e no nada, ela resolve fazer uma panorâmica da estrada à sua frente), que por um instante não nos perguntamos se tudo se passaria ali, ao lado da rodovia. O filme, que aos poucos se torna menos sutil, precisa desses bons minutos, e é preciso coragem para mantê-los, fazer cinema daquilo, do "nada" aparente, e, enfim, soltá-lo no mundo.

    Essa não discrição de Lordello, por sinal, encontra lugar no fato de termos em Eles Voltam a perspectiva de uma garota de doze - ou onze? - anos. Não há nenhum receio na distinção de classes que o cineasta quer apresentar, entre aqueles que Cris esbarra no caminho e a preocupadíssima recepção dos entes queridos. Ironicamente, o único perigo real presente no longa não se destina a Cris ou ao seu irmão; sequer aparece na tela, ainda que seja revelado no momento certo.

    O rápido confronto com o avô, por sua vez, deixa claro o poder da experiência passada pela garota. No entanto, mais importante que o enfrentamento em si, direto e simples, talvez seja a vontade de enfrentar, e, no caso de Lordello, o que me parece ser uma vontade de fazer com que Cris passe a existir. Pois o primeiro plano de Eles Voltam, hoje penso, não poderia ser diferente: alto, muito aberto, as estrada e os carros distantes, e aqueles dois mal são pessoas, e sim apenas dois pontos arremessados num filme. Depois são filmados cada vez mais próximos, os rostos muito fortes, e Peu (Georgio Kokkosi), o irmão, também deixa a impressão de que daria outro bom filme, mas ele segue pro lado que a câmera prefere não ir. A riqueza de Eles Voltam parece estar nesse processo de transformação da menina Cris (não de uma garota qualquer; dela, aquela experiência é dela), captado por Lordello com tamanha naturalidade.

    Truffaut foi o grande cineasta das faces infantis. Filmava como poucos a primeira juventude, curiosa e, ironicamente, em certo conflito com a educação e o aprendizado. O melhor elogio que tenho a Lordello é que seu Eles Voltam leva a uma vontade de rever, mais uma vez, Os Incompreendidos (1959). E, assim como Truffaut e Jean-Pierre Léaud/Antoine Doinel, seria um prazer visitar Lordello e Maria Luíza Tavares/Cris mais três ou quatro vezes em filmes futuros.